O cineasta brasileiro Glauber Rocha foi um dos precursores do Cinema Novo no Brasil e produziu filmes críticos enquanto o país passava por uma grande censura e repressão durante a ditadura militar. O Cinema Novo se caracterizava por ser um cinema totalmente engajado com as questões sociais e trazia uma identidade própria, se opondo ao formato de produção estadunidense reinante na época. Glauber lançou um manifesto intitulado “A Estética da Fome” que trazia as características dessa nova forma de se pensar o país e se fazer cinema, trazendo para as telas a vivência social de países subdesenvolvidos. O manifesto sugeria uma “cultura da fome” mostrando que a alternativa da produção cultural dos países pobres era superar em qualidade e criatividade o que lhe faltava em estrutura.
O livro “Cultura e Participação nos anos 60” de Heloísa Buarque de Holanda e Marcos Augusto Gonçalves nos mostra que a originalidade do Cinema Novo diante do cinema mundial estaria no fato de representar a “fome latina” e a sua mais “nobre” manifestação cultural: a “violência”. Podemos entender essa tal fome latina, não só como a fome do estômago, mas também a fome por mudanças que contagiou os países latino-americanos nas décadas de 50 e 60 e que culminou na revolução cubana em 1959. O que parecia ser inevitavelmente o destino de todos os países latinos foi amputado e minado por golpes militares. O receio de o Brasil se tornar “uma outra Cuba”, numa época em que o povo saía às ruas para reivindicar as reformas de base (agrária, tributária, política, educacional), e também cobrava a legalização do Partido Comunista, levou ao golpe militar orquestrado pelos Estados Unidos.
Glauber Rocha escreveu em seu manifesto que uma estética da violência, antes de ser primitiva é revolucionária. Utilizando-se do manifesto do cineasta e trazendo isso pros dias atuais e para as culturas produzidas por moradores de favelas e periferias, podemos dizer que só pela violência que o opressor irá perceber a existência do oprimido. Somente conscientizando essa única opção é que o opressor poderá compreender, pelo horror, a força da cultura que ele oprime e persegue. Nas palavras de Glauber “enquanto não ergue as armas, o colonizado é um escravo: foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino”. Essa violência de que falamos não está diretamente ligada ao ódio, mas também não está ligada ao falso humanismo vendido pelo opressor. “O amor que esta violência traz é tão brutal quanto a própria violência, porque não é um amor de complacência, mas um amor de ação e de transformação”.
Recentemente no Rio de Janeiro, após a investida das polícias e do exército nos morros e favelas, buscando executar o plano da tal “pacificação”, rumo às Olimpíadas e Copa do Mundo no Brasil, aumentou os abusos e violações dos direitos humanos praticados por esses agentes do Estado. O poeta e defensor dos direitos humanos Deley de Acari escreveu uma poesia em denúncia a esses abusos que exprime bem esse amor revolucionário – defendido por Glauber – que não se inquieta diante das atrocidades:
“Porque somos pacatos pensam que somos covardes / Porque somos humildes pensam que somos submissos / Porque somos calados pensam que aceitamos sem reagir que espanquem, torturem, humilhem e chacinem nossos meninos / Porque rosnam e babam feito pitbull pensam que nos paralisam de medo nos botando terror / Porque amamos a paz pensam que tememos a guerra e fazem de nossa comunidade um campo de concentração / Pensam que ficarão impunes seus crimes perversos contra nossa favela / Porque trazemos os braços abertos e as mãos vazias e limpas pensam que não temos armas pra lutar em nossa legítima defesa / Maior que seu ódio e crueldade é nosso amor pela justiça e pela verdade / Eu que não desprezo o valor de outras armas, escolhi o poema, o funk, o hip hop e o samba / E faço deles mais algumas armas pra criar no Acari assim como os pacatos e os justos fazem, um clima organizado de paz”.
Durante a ditadura militar muitos foram os artistas que utilizaram sua arte como uma ferramenta de luta contra a crueldade cometida pelo regime. A resistência cultural contra a ditadura foi grande, no cinema, na música, na poesia, no teatro, artistas militantes engajados se juntavam a outros movimentos sociais lutando para derrubar aquele sistema cruel e sangrento. Nessa mesma época, mais precisamente no início da década de 70, surgia nos Estados Unidos – com influência jamaicana – o Movimento Hip-Hop, trazendo uma nova forma de expressão artística e contestação dos jovens negros e latinos pobres que habitavam os guetos. Impulsionados pelos ensinamentos de Malcon X, Martin Luther King e os Panteras Negras, os jovens faziam dessa cultura uma forma de protestar e lutar contra o racismo, preconceito, discriminação e opressão que a população negra sofria.
O Hip-Hop chegou ao Brasil só na década de 80, no finalzinho da ditadura militar. Em pouco tempo se tornou a grande forma de expressão artística dos jovens favelados brasileiros e se organizou como movimento social. Em 1983 o Hip-Hop no Brasil tinha seu maior expoente na dança de rua Break (um dos quatro elementos do movimento), até então não existia no país grupos que cantavam a música rap. Os dançarinos se reuniam nas praças e estações de metrô e sofriam forte repressão da polícia. Nelson Triunfo que participou do início do movimento e que sempre cultivou um enorme cabelão – rompendo com os padrões de comportamento da época - disse em entrevista ao documentário “É Tudo Nosso”:
“Eu fui um dos cara que mais apanhei da polícia, pro cara usar um cabelo desse aqui no tempo do militarismo tinha que ser foda mesmo senão não agüentava não, era porrada todo dia. Alguns anos depois vieram falar que quando eu dançava em 83 na 24 de Maio era mais diversão, que eu não tinha idéia do que tava fazendo dançando Hip-Hop. Agora imagina o cara chegar no centro da cidade, tomar um bocado de porrada da polícia, ir preso, e no outro dia ta lá dançando de novo, eu quero saber o que tem de divertido nisso”.
No contexto do “fim” da ditadura militar no país, uma das maiores contribuições do rap foi mostrar que a ditadura militar não acabou, ela continua viva, mas agora travestida de democracia. Uma democracia que também tortura, reprime, e que traz contigo resquícios da ditadura e de um passado ainda não resolvido na sociedade brasileira. Não é à toa que boa parte das musicas de rap narram a violência policial perpetrada nas favelas e periferias e combatem os abusos de autoridade que são na verdade a continuidade do que aconteceu durante a ditadura. Antes do regime militar no Brasil não existia polícia militar e as demais polícias não usavam armas de fogo. Os mandados de busca e apreensão coletivos de hoje, no qual a polícia pode chegar numa favela e invadir casa por casa e também os autos de resistência onde um policial executa uma pessoa e alega que ela foi morta porque reagiu e entrou em confronto, é fruto da ditadura militar.
O povo favelado continua sofrendo com a ditadura velada dos dias atuais. Deley de Acari sofreu na pele as atrocidades praticadas pelos militares e sabe que a violência de hoje é resquício da violência do passado. Após o assassinato de Betinho, funkeiro da Favela de Acari e das agressões que o rapper Fiell do Morro Santa Marta sofreu por parte dos policiais, Deley escreveu em seu blog um texto onde conta como os militantes e artistas moradores de favela sofrem com a repressão:
“Só sei que qualquer motivo, mesmo o mais banal, é motivo bastante para os vermes atentarem contra as vozes discordantes e resistentes nas favelas”. Relembrando os anos de chumbo Deley escreveu: “Durante a Ditadura Militar muitos artistas de favela e periferia, sofreram perseguição, foram presos, reprimidos e censurados simplesmente pelo conteúdo contestatório e “comunista” de suas, obras de arte, no teatro, na música, na poesia. Enquanto os “medalhões” da musica de protesto tiveram condições de se exilar na Europa, nós ficamos aqui mesmo, exilados em nossas próprias favelas, em nossa periferia. Ao contrário do que aconteceu com esses medalhões, jamais fomos reconhecidos como “defensores de direitos humanos” que tínhamos como instrumento de luta, nossa arte.
Nos dias atuais, existem diversos movimentos culturais que combatem a violência de Estado. O teatro de rua, o cinema de periferia, os escritores e poetas marginais e periféricos, o Funk, o Hip-Hop, fazem de suas práticas culturais uma ferramenta de resistência, de denúncia, de construção, “de ação e transformação” como sugeriu Glauber. No Brasil, coletivos de “Hip-Hop Combativo” lutam pela abertura dos arquivos da ditadura e produziram um vídeo clipe da música “Ecos do Passado” que foi produzida coletivamente por militantes de São Paulo, Rio e Manaus. Um dos grupos que participa do vídeo é o grupo O Levante (RJ), grupo de viés socialista, internacionalista e que traz em suas músicas e ações o combate direto ao sistema capitalista. Em uma musica de seu primeiro álbum, intitulada “Revolução” podemos ouvir:
“Brotando do chão da periferia / a indignação se transforma em poesia / que desvenda os olhos, que destapam os ouvidos / pra fatos esquecidos / ou que estavam escondidos / como a guerrilha do Araguaia no regime militar / pedaço da nossa história que a imprensa não pôde contar / Rass Sobrinho, Osvaldão, Elza Monerat / quando ouvir nosso som você vai se lembrar / dos pretos estadunidenses nos instantes seguintes / ao assassinato do pastor Martin Luther King / vai lembrar do seqüestro do embaixador suíço / trocado por 70 presos políticos / dos quartéis, dos presídios, direto pro exílio / e no Chile de Allende foram acolhidos / obra assinada pela VPR / de Lamarca companheiro de Iara Iarenberg / vai lembrar de Conselheiro defendendo Canudos / e do verdadeiro MR8 de outubro (...)”.
Hoje a nossa democracia, ou “democracídio” – como costuma falar o amigo Eduardo Marinho – mata mais pessoas do que matou a ditadura. É claro que não podemos hierarquizar a violência – como fazem setores conservadores da nossa sociedade que chamam a ditadura no Brasil de ditabranda – sob o argumento que aqui se matou menos do que nas outras ditaduras da América Latina. A ditadura no Brasil foi cruel e sangrenta como em qualquer outra ditadura de qualquer parte do mundo. Ela matou sim – e matou muito – ocultou cadáveres, torturou, proibiu a participação política e a livre manifestação cultural do povo, baniu, cometeu crimes de lesa-humanidade.
Em nenhum sistema social nós podemos admitir que o Estado atente contra a vida de uma pessoa sequer. Resgatar esse passado sombrio, lutar para que se abram os arquivos, instalar comissões pela verdade e justiça é uma forma de lutar para que os crimes do passado nunca mais se repitam e buscar construir a cada dia uma sociedade mais humana.
O HIP-HOP, O CINEMA E A RESISTÊNCIA “PÓS-DITADURA”
08:49 |
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