Analisei algumas das muitas letras de rap que tocam na questão do trabalhador e do trabalho.
O movimento Hip-Hop é um movimento negro oriundo das favelas e periferias espalhadas pelo mundo. A favela sempre sofreu com o preconceito e sempre carregou a estigma de ser um lugar violento onde as pessoas vivem da informalidade e criminalidade. Sempre nos acusaram e nos culparam da condição social que nos encontramos, dizendo que o povo vive nas favelas porque são vagabundos e não gostam de trabalhar. Na verdade todos sabem que o povo vive nas favelas pela omissão do governo que arrecada impostos e não reverte em melhorias de vida para a população, que não faz a reforma agrária e urbana, e também por conta da exploração da força de trabalho que o nosso povo sofre. O Hip-Hop chegou no Brasil no início da década de 80, mas antes do movimento, o samba já defendia a favela. O grande sambista Bezerra da Silva escreveu na musica Eu sou Favela:
“A favela, nunca foi reduto de marginal / Ela só tem gente humilde marginalizada / E essa verdade não sai no jornal / A favela é, um problema social / Sim, mas eu sou favela / Posso falar de cadeira / Minha gente é trabalhadeira / Nunca teve assistência social / Ela só vive lá / Porque para o pobre, não tem outro jeito / Apenas só tem o direito / A um salário de fome e uma vida normal”.
O grupo Exalta Samba - mais recentemente - gravou a música chamada Favela, onde cantam:
“O povo que sobe a ladeira ajuda a fazer mutirão / Divide a sobra da feira e reparte o pão / Como é que essa gente tão boa é vista como marginal / Eu acho que sociedade está enxergando mal / Nem sempre a maldade humana está em quem porta um fuzil / Tem gente de terno e gravata matando o Brasil”.
A gente vê que o povo que sofre a estigma de não querer trabalhar na verdade é o povo que mais trabalha e o dia que os favelados resolverem não sair de casa para o trabalho será a primeira greve geral no Brasil inteiro. O dia que o favelado parar a cidade toda pára.
Com a revolução industrial vem o processo de mecanização do trabalho e a modificação dos processos produtivos. No passado o poeta cearense Patativa do Assaré escreveu uma poesia falando da diferença do gosto da rapadura feita de forma manual no sertão e o gosto da rapadura feita através das máquinas. Com a informatização o trabalho manual vai sendo substituído pelo trabalho das máquinas controladas pelos computadores. O grupo de rap Inquérito, do interior paulista, compôs uma música que se chama Máquina Mortífera. Através da metáfora da “máquina” criou uma ótima poesia onde fala da substituição do homem pela máquina e da mecanização do ser humano:
“Meia noite e quarenta, dia oito do seis / Lua cheia, quarta-feira, comecinho do mês / Hoje foi dia ó, fez 5 anos / Que eu sai do serviço, que eu tô sem trampo (...) / Antigamente no começo até fazia uns bico / Só que hoje em dia parceiro, nem isso / Tá difícil hein, até pra quem é formado / Imagina pra mim só com Mobral, acabado (...) / Porque que ele teve que me mandar embora / Porque será que tem que ser dessa forma / Perder o emprego pra uma máquina que nem respira / Ou perder a vida na mira duma maquina que atira / Falando em arma aê lembrei do gatilho / Do meu patrão com o dedo no cão Bum!!! Demitido / Foi tipo um tiro, ó, acabou comigo / Aquela palavra ainda ecoa no meu ouvido”.
E a música segue falando da atual sociedade onde evolui-se na tecnologia mas não nos direitos humanos, onde “a metralhadora fabrica os mortos enquanto a calculadora conta os corpos”.
“Tá lembrado do meu patrão, o Zé Lucro / Então, fiquei sabendo que ele perdeu tudo / Disseram que a esposa morreu atropelada / E o filho no assalto, reagiu meteram a maquina / A mesma que tirou meu emprego / Deixou ele viúvo e sem herdeiro (...) / O Zé vendeu tudo as maquinas, fechou a fabrica / Tá quase morrendo em cima de uma maca / Envelheceu, enferrujou, saiu de linha, tá la / Dependendo de uma maquina até pra respirar (...) / Esquece da tia que morreu doente / De tanto trampar numa Singer, numa Brastemp / Talvez ele aprenda agora, ó, quase em coma / Que a vida vale mais que uma maquina registradora”.
O rapper morador da favela de Heliópolis - SP, Rappin Hood ilustrou o cotidiano dos moradores de favelas em sua música chamada Suburbano. O mano canta:
“Todo dia às 5 da manhã começa tudo de novo / Todo dia às 5 da manhã desperta meu povo / Suburbano, suburbano, suburbano / Acorda meu amigo, pois já chegou a hora / A hora da batalha, simbora / E da a caminhada até a estação / Com trem lotado e a marmita na mão / Olha o ambulante vendendo seus produtos / Paga 2 leva 3 e não se fala mais no assunto (...) / A garotada acordando pra ir para a escola / E vai saindo pra treinar o mano que joga bola / Percebo que a preta velha vai fazer café / E hoje ela canta Gil, andar com fé”.
Um documentário chamado FALA TU narra a história de três moradores de favelas do Rio de Janeiro. Macarrão trabalha como apontador de jogo do bicho; Toghum é vendedor de produtos esotéricos; Combatente trabalha como operadora de telemarketing. Os três cantam rap e sonham em fazer de sua arte sua profissão. Na trilha sonora do documentário estão as músicas que eles compõem. Macarrão escreveu uma música interessante sobre o seu trabalho:
“Sete da manhã, tenho que levantar / Não posso perder a hora de trabalhar / Há tempo já acordou a mulher / Enquanto eu pago um banho ela agiliza o café / Beijo na família e já é / meto o pé, to atrasado / Tempo é dinheiro, se ta ligado / No poste o quadro de resultado / O Talão, a cadeira, a mesa, a caneta / Jogo do bicho, estrema habilidade nisso / Não sou porque eu quero, sou porque preciso / A mão de obra que o sistema olha de lado / O jogo ta formado, é isso que eu faço / Milhar e centena, terno de dezena / pode apostar (...) / Não vai ter caô, paga no mesmo momento / Sem caôzada, sem palhaçada, burocracia / Aqui não é Loteg, raspadinha / Há 30 anos a loteria tá no mesmo lugar / Eu não conheço um milionário que saiu de lá / Sou o contrário do que mostra a televisão / Contraventor sim, criminoso não”.
A música ainda fala da perseguição que os trabalhadores informais sofrem, com o rapa, choque de ordem, violência policial, apreensão das mercadorias e fala do salário mínimo de miséria que ganha o povo assalariado.
Um dos grupos de rap mais politizados que eu conheço é o grupo O Levante, do Rio de Janeiro. Os manos trazem em suas músicas toda a ideologia revolucionária que luta pelo fim da sociedade de classes e por um mundo sem privilégios, sem explorados e sem exploradores. Em seu segundo álbum chamado Estado de Direito, Estado de Direita, os irmãos mostram como o capitalismo é inviável para uma sociedade que quer avançar na luta por direitos humanos e por uma sociedade igualitária. Recentemente o rapper norte americano 50 Cent produziu um filme com o nome Fique Rico ou Morra Tentando adoecendo os nossos jovens com a idéia de que a luta mais digna do ser humano é lutar pra ficar rico. Contrapondo essa idéia O Levante escreveu uma música intitulada Faça a Revolução ou Morra Lutando onde traz a discussão de que o mundo que os rappers capitalistas pregam é um mundo ilusório que exclui a maioria das pessoas e mostra que o movimento Hip-Hop não pode perder jamais a sua essência socialista. Veja alguns trechos da música:
“50 Cent? Fala sério, aqui é rap verdadeiro / Feito com amor à arte, à luta e não por dinheiro (...) / Quantos amigos seus moram em mansão? / Quantas vezes você já deu role de iate? / Quantos carros daqueles passam no teu quarteirão? / E teu cordão é de ouro? então diz quantos quilates (...) / A opressão tem classe, sexo e cor / A revolução é um gesto de amor / Viver por viver o melhor é morrer / Faça a revolução ou morra lutando / Não se acumula riqueza sem se por a miséria / Não posso te divertir rimando sobre coisas sérias / Rimar por rimar o melhor é parar / Faça a revolução ou morra lutando / Zumbi não tinha mansão quando foi decapitado / Marighela morreu no fusca e não em carro importado / Lamarca e Zequinha só tinha uma rapadura / Quando morreram na mão de agentes da ditadura / O doutor Che Guevara quando foi capturado / Tinha dois sacos nos pés, que ele fez de calçado (...) / De auxiliar de serviços gerais já trabalhei / Já operei mesa de áudio, já fui ambulante / Já fui comerciante, trabalhei de carteiro / Já fui mensageiro de hotel, já fui feirante / Já trabalhei de ajudante de caminhão / Operário, já estive na linha de produção / Se carecer volto a exercer qualquer profissão / Mas me recuso a enriquecer vendendo alienação”.
O Levante une arte e militância. O grupo faz parte do Coletivo LUTARMADA que desenvolve trabalhos nas periferias do Rio de Janeiro, como cursos de formação, oficinas e eventos. Já organizaram um ato contra as tropas brasileiras no Haiti, ato pela abertura dos arquivos da ditadura e o coletivo organizou também algumas edições do ato chamado HIP-HOP ao Trabalho. O evento foi organizado nas favelas de Costa Barros. Conversando com Gaspa, do grupo O Levante e militante do Coletivo LUTARMADA ele me disse que a idéia do evento é “que as gerações mais recentes aprenderam que o primeiro de maio é dia de festa, então vamos fazer festa pra aprender que o primeiro de maio é dia de luta”. No ato apresenta-se os quatro elementos do Hip-Hop, o rap, o dj, o grafite e o break, também as trançadeiras e já rolou BMX e Skate. Questionei sobre a participação de sindicatos, ONGs, partidos políticos e outros movimentos sociais além do Hip-Hop e Gaspa diz que “a intenção é que eles estejam presentes pra fazer o contato com a comunidade e a partir daí até um trabalho de base mais consolidado, mas não deu certo porque parece que os sindicatos, os partidos e os movimentos tem nojo de favela. Os partidos só pisam lá de 2 em 2 anos pra pedir voto, ou então depois do desabamento ou da chacina policial pra se locupletar e ONGs a maioria não é bem vinda”.
O grupo de rap gospel Apocalipse 16 gravou um álbum com a banda – também gospel – Templo Soul. Em uma das musicas chamadas Chicote Estrala fala da corrupção, desinteresse e descaso dos políticos.
“Sem trabalho, sem salário, sem comida dentro do armário / Sistema falho, sem estudo, falta de tudo, fim do mundo / Absurdo, já não me iludo, poder fajuto, / dinheiro imundo, comprando todo mundo / Passagem de ida somente para o fundo / Quem não se vende, os homens prendem / Quem não paga, os homens matam / E assim a maldade se propaga / Quantos réus ainda mais eles querem / Quantos milhões ainda mais eles querem / Quantos mortos ainda mais eles querem / Quantos órfãos ainda mais eles querem / Quantas prostitutas ainda mais eles querem / Quantos inocentes nesses jogos se ferem / A justiça virá, tenha calma, esperem / Eu vou lamentar, mas cabeças vão rolar”
Mesmo com uma visão da igreja de que a justiça é somente a justiça divina, os manos pautam na letra que a corrupção e o descaso não serão aceitos e que um dia pagarão pelo mal que estão praticando.
“Pra quem oprime o povo pobre que rala / O chicote estrala, o chicote estrala / Com o fruto do seu roubo na mala / O chicote estrala, o chicote estrala / E pra quem mata o inocente a bala / O chicote estrala, o chicote estrala / Autoridade que vê tudo e se cala / O chicote estrala”.
A rapper carioca Nega Gizza escreveu uma musica chamada Prostituta onde narra as condições de trabalho e o preconceito que as garotas de programa enfrentam.
“Tô deprimida ambiente de desgraça / Traficantes, parasitas, viciados, psicopatas / Um baseado pra afastar essa fadiga / Dessa noite sedentária de orgia e mal dormida / Não choro mais, sei que me perdi / Tô consciente o meu destino eu escolhi (...) / Sinto sintomas da fadiga no meu corpo / Mas sedativos aliviam as conseqüências desse aborto / A perversão deixa profundas cicatrizes / Em desespero já tentei vários suicídios / Você acha que é falta de moral promiscuidade excessiva / Seja puta 2 minutos e sobreviva / Tenho um sonho, amor e vaidade / Um teco ajuda a suportar a enfermidade / As famílias me odeiam por causa da luxuria / Mas só vendo minha carne e meu carinho a quem me procura / Se meu filho chora sou eu a mãe que escuta / Meu Deus desculpa, não tive culpa, só fui à luta”.
Nos últimos versos da música ela narra a decadência física e psicológica de uma prostituta com o passar dos anos:
“Aos 16 só curtição, pensava em nada / Hoje aos 23 neurose a mil, só transa angustiada / Aos 33 quem sabe velha arrependida / Aos 43 só no esqueleto recordo a vida / Minha puta vida reflete o desespero / Sou a ausência do amor com a presença do dinheiro”.
O rapper Max BO escreveu uma musica que gostei quando ouvi a primeira vez, depois fiquei preocupado. A música chama-se Fábrica de Rap.
“Sem entrevista, sem ficha, sem formulário / Todo mundo é patrão, todo mundo é funcionário / Aqui ninguém bate cartão, não, ninguém tem horário / Mas todos tem a consciência do compromisso diário / Meu rap não tem salário, você me entende / Ainda tem tipo que tenta, tenta, mas não compreende / Não sabe por que que é obrigado no almoço / Bater 60 cravados pra não ficar sem pescoço (...) Meu pai é dono de um boteco, sim, Microempresário / Agüenta bafo de bebum, mas não ouve ordem de otário (...) / Minha mãe é dona de casa, não trampa em casa de dona / Que usa laquê, saiote e pele cafona / Com esses esforços já desde muito moleque / Montei meu próprio negócio: a minha Fábrica de Rap”
Nos dias atuais os empresários capitalistas fazem de tudo para que o trabalhador não se reconheça mais como trabalhador. Chama o trabalhador de colaborador, parceiro e outros antônimos de trabalhador ao mesmo tempo em que cooptam sindicatos e tentam transformar o dia 1° de maio em um dia somente de festividade, tirando a sua essência de ser um dia de luta, denúncia e reivindicação. Outra palavra bastante utilizada pelo capitalismo é o empreendedorismo. Prega que o funcionário dedicado um dia poderá abrir seu próprio negócio e ser um microempreendedor individual, ou seja, um futuro patrão. Desse jeito cria-se uma consciência de que não existe conflito entre as classes e abre espaço para a individualidade e competitividade.
A intenção do Max BO foi boa, mas acredito que ele driblou o goleiro e chutou pra fora:
“Ontem eu quase pedi esmola e hoje eu tenho sócios / Rap no estilo pequenas empresas, grandes negócios (...) / Com a gente é diferente, sai fora pé de breque / Pega um papel e a caneta e abre sua Fábrica de Rap”.
CONTRAINDICAÇÃO
A contraindicação fica pra música do Gabriel o Pensador chamada Dança do Desempregado. O rapper carioca fez uma música “engraçada” sobre um tema muito sério. Gabriel não sabe o que é sofrer com o desemprego, sempre pertenceu a classe média alta e insiste em usar o rap para fazer musicas carregadas de preconceito e deboche. Na Dança do Desempregado ele canta:
“E vai levando um pé na bunda vai / Vai pro olho da rua e não volta nunca mais / E vai saindo vai saindo sai / Com uma mão na frente e a outra atrás”
Na música ele fala dos trabalhadores que compram mercadoria no Paraguai para revender em suas cidades. Fala dos assaltantes e fala das garotas de programa.
“E vai rodando a bolsinha (Vai, vai!) / E vai tirando a calcinha (Vai, vai!) / E vai virando a bundinha (Vai, vai!) / E vai ganhando uma graninha”. “E bota a mão no trinta e oito e vai devagarinho / E bota o ferro na cintura e vai no sapatinho / E vai roubar só uma vez pra comprar feijão / E vai roubando e vai roubando e vai virar ladrão”.
O Hip-Hop tem que avançar na politização de seus militantes, para combater os excessos dentro do movimento. Tem que cada vez mais se engajar com outros movimentos sociais que também lutam por uma sociedade igualitária. Tem que se reencontrar e redescobrir a sua essência, retomar a consciência de classe, lutar por uma sociedade socialista.
clique para ouvir a música:
MÁQUINA MORTÍFERA – INQUÉRITO
RAPPIN HOOD - SUBURBANO
Clipe Macarrão - Jogo do Bicho
O LEVANTE - RIMAS DA LIBERTAÇÃO
Apocalipse 16 e Templo Soul - Último Dia
Nega Gizza - Prostituta
FÁBRICA DE RAP - MAX B.O
Gabriel, O Pensador - Dança do Desempregado
O RAP E O TRABALHADOR DA FAVELA
10:20 |
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